... e especialmente no Departamento Profissional
Escrito pelo Dr. Piragibe Nogueira*, para a Revista "Tricolor", nº 1, em 1949.
As lides do esporte exigem organismo espiritual e fisicamente sadio, isto é, o que realmente se deve chamar de boas condições de saúde. Uma tal situação depende de compleição física harmonicamente desenvolvida, equilíbrio alimentar perfeito e de educação espiritual ou psicológica que faculte a compreensão da necessidade e da importância das competições, assim como dos deveres de um atleta para com o público, para com seu clube e para com o adversário, no decorrer de uma pugna esportiva.
Com um povo que, na sua grande maioria, vive em estado de subnutrição qualitativa e até quantitativa, pode-se imaginar que, de início, um dos problemas elementares do médico será dar aos futuros atletas uma noção das necessidades alimentares básicas do organismo humano, nas diferentes etapas da vida.
A idéia de fracção protéica, hidrocarbonada, gordurosa e vitaminada tem que ser incutida nos praticantes do esporte, de uma maneira tão simples como penetrante, para que eles passem a avaliar o papel fundamental da alimentação e tenham até noção do valor calórico, apreciavelmente correcta, dos componentes de uma refeição. Isto já evitaria a cena, meio cômica, meio ridícula, mas inteiramente condenável, de um craque de futebol a tomar, por via endovenosa, alguns centímetros cúbicos de uma solução hipertônica de glicose, no intervalo de um jogo. A grande desidratação a que o jogador está sendo submetido vai ser intensificada pela glicose hipertônica e a quantidade de glicose, como fonte de calorias, é absolutamente irrisória.
Importante e necessário é ter sido o atleta preparado para a prova e este preparo nunca foi possível sem boas condições de nutrição. A alimentação não é, entretanto, o único problema básico em matéria de condições físicas do esportista, entre nós. Ao seu lado, surgem as doenças, e podemos chamar também doença o mau estado dentário tão comum e o péssimo estado dentário que é mais comum ainda. No que concerne às condições do aparelho respiratório e do circulatório, o descaso, em nosso meio, já vem sendo corrigido, mas isso, depois de verdadeiros “estouros”, como o de portadores de lesões cardíacas avançadas ou de tuberculosos multicavitários a serem vaiados nos gramados e advertidos pela direcção “técnica”, porque não conseguiram “produzir”. E alguns dessa situação só saíram, para o confinamento do leito que precedeu de pouco aquele encontrado no túmulo. As parasitoses e as infecções intestinais constituem um outro capítulo e, embora sem colorido trágico, representam, pela freqüência e intensidade, um dos factores negativos mais comuns a serem afastados. Não para aí a acção do médico, pois não basta que ele concorra para a base de uma boa performance e há mister de que ele observe, trate ou oriente o atleta que sofre, no decurso de uma prova, os acidentes comuns a esta ou aquela espécie de esporte.
Mais de 50% dos acidentes comuns aos músculos, ligamentos e articulações teriam sua cura realizada dentro de uma a duas semanas de maneira definitiva, se fossem afastados o empirismo, a ignorância e a charlatanice de improvisados massagistas que “põem o nervo no lugar”, mesmo nos casos de ruptura de feixes musculares, entorses, luxações e até faturas, fazendo o traumatizado, seja pela continuação da prova, seja pelo retorno precoce à actividade, agravar muito ou tornar séria uma lesão de menor importância.
Não é tudo sobre o assunto.
Que dizer dos máximos dirigentes do nosso futebol, impedindo a substituição, nas provas de campeonato, dos jogadores que sofrem traumatismo, de vulto a impedir actuação eficiente, e até dos traumatismos que de início levam o jogador ao hospital? Este clamoroso erro biológico, esportivo, técnico e econômico tem alguma justificativa lógica? O critério médico para as substituições em casos de traumatismos durante as provas de futebol é uma dessas medidas cuja ausência, entre nós, demonstra até falta de bom senso. A responsabilidade desses actos seria inteiramente do médico e este sabe que só pode justificá-las com factos reais. Quanta cena deprimente tem sido assistidas em nossos gramados, causadas pela actuação forçada e penosa de um jogador traumatizado!...
E, muitas vezes, a falta de jogador, ou, melhor, de um seu substituto, desorganiza completamente sua equipe, tornando inferior e sem interesse o restante da partida. Embora o profissionalismo, com as lacunas que já se fazem permanentes entre nós, tenha deformado muito o conceito do futebol como esporte e tenha tirado muito dos atributos vantajosos de suas competições, não se compreende, a não ser como proibida, a permanência na disputa de uma partida de um jogador seriamente contundido.
Mas voltemos ao papel do médico. Admita-se que tudo corra bem, durante a partida, e que a vitória venha coroar os esforços de um determinado conjunto. Cessará aí o papel dele? Não. Por certo ele não será elemento muito destacado nas expansões de entusiasmo superficial e nem nos abraços dados aos jogadores molhados pelo suor ou pela água dos chuveiros, pois terá de continuar seu trabalho. Compete ao médico, nesse momento, fazer uma revisão de todos os elementos de sua equipe, na busca de pequenos traumatismos, não importantes no decurso da refrega terminada, mas cuja evolução, se desfavorável, poderá incapacitar seu portador para a próxima partida.
Depois de tudo isto, ainda lhe compete prover e orientar a recuperação da equipe, através de repouso, alimentação e, às vezes, medicação adequada.
É uma tarefa das mais delicadas e principalmente em um meio em que a deficiência de instrução constitui quase uma regra. O médico precisa contar com uma autoridade construída na simpatia e na persuasão, pois, só assim, poderá evitar que os jogadores e certos “ardorosíssimos” aficcionados, comemorando, com excessos de toda espécie, e a vitória de hoje, preparem, de maneira inevitável, a derrota de amanhã. Eis, em linhas gerais, para esporte e um tanto particulares para o futebol, o papel do médico. Sua realização integral é impossível, sem a cooperação dos dirigentes, dos atletas e do quadro social. E é este o programa que o São Paulo Futebol Clube vem procurando pôr em prática, justificando, mais uma vez, seus esforços em prol do desenvolvimento da fisicultura, no Brasil.
*O Dr. Piragibe Nogueira, sócio nº 1 do São Paulo, faleceu n dia 5 de outubro de 2008 aos 103 anos. O presidente Juvenal Juvêncio decretou luto oficial de sete dias em decorrência do falecimento.
Quando da fusão com o Clube Atlético Estudantes, ao qual pertencia, o médico Piragibe Nogueira proferiu o voto de Minerva na histórica reunião que, em 1938, escolheu a denominação São Paulo Futebol Clube. Na ocasião, foi eleito presidente e, em 1941, escolhido presidente do Conselho Deliberativo. De 1948 a 1951, dirigiu o Departamento Médico do clube, para onde levou toda sua vasta experiência profissional. Entre 1951 e 1962, foi consecutivamente eleito Presidente do Conselho Deliberativo. Participou ativamente da Comissão Pró-Estádio, cujo trabalho resultou na edificação do Morumbi. Por diversas vezes, na década de 60, ocupou a vice-presidência do tricolor. Foi nomeado conselheiro Vitalício em 1973 e assumiu a Presidência do Conselho Consultivo entre janeiro de 1979 e janeiro de 1984. Piragibe foi o único são-paulino que ocupou a Presidência dos três Conselhos.
Sua frase que ficou para história foi declarada ao amigo que me serviu de fonte para esse artigo, o "Chefe", quando o Dr. Piragibe estava aos seus 101 anos:
Com um povo que, na sua grande maioria, vive em estado de subnutrição qualitativa e até quantitativa, pode-se imaginar que, de início, um dos problemas elementares do médico será dar aos futuros atletas uma noção das necessidades alimentares básicas do organismo humano, nas diferentes etapas da vida.
A idéia de fracção protéica, hidrocarbonada, gordurosa e vitaminada tem que ser incutida nos praticantes do esporte, de uma maneira tão simples como penetrante, para que eles passem a avaliar o papel fundamental da alimentação e tenham até noção do valor calórico, apreciavelmente correcta, dos componentes de uma refeição. Isto já evitaria a cena, meio cômica, meio ridícula, mas inteiramente condenável, de um craque de futebol a tomar, por via endovenosa, alguns centímetros cúbicos de uma solução hipertônica de glicose, no intervalo de um jogo. A grande desidratação a que o jogador está sendo submetido vai ser intensificada pela glicose hipertônica e a quantidade de glicose, como fonte de calorias, é absolutamente irrisória.
Importante e necessário é ter sido o atleta preparado para a prova e este preparo nunca foi possível sem boas condições de nutrição. A alimentação não é, entretanto, o único problema básico em matéria de condições físicas do esportista, entre nós. Ao seu lado, surgem as doenças, e podemos chamar também doença o mau estado dentário tão comum e o péssimo estado dentário que é mais comum ainda. No que concerne às condições do aparelho respiratório e do circulatório, o descaso, em nosso meio, já vem sendo corrigido, mas isso, depois de verdadeiros “estouros”, como o de portadores de lesões cardíacas avançadas ou de tuberculosos multicavitários a serem vaiados nos gramados e advertidos pela direcção “técnica”, porque não conseguiram “produzir”. E alguns dessa situação só saíram, para o confinamento do leito que precedeu de pouco aquele encontrado no túmulo. As parasitoses e as infecções intestinais constituem um outro capítulo e, embora sem colorido trágico, representam, pela freqüência e intensidade, um dos factores negativos mais comuns a serem afastados. Não para aí a acção do médico, pois não basta que ele concorra para a base de uma boa performance e há mister de que ele observe, trate ou oriente o atleta que sofre, no decurso de uma prova, os acidentes comuns a esta ou aquela espécie de esporte.
Mais de 50% dos acidentes comuns aos músculos, ligamentos e articulações teriam sua cura realizada dentro de uma a duas semanas de maneira definitiva, se fossem afastados o empirismo, a ignorância e a charlatanice de improvisados massagistas que “põem o nervo no lugar”, mesmo nos casos de ruptura de feixes musculares, entorses, luxações e até faturas, fazendo o traumatizado, seja pela continuação da prova, seja pelo retorno precoce à actividade, agravar muito ou tornar séria uma lesão de menor importância.
Não é tudo sobre o assunto.
Que dizer dos máximos dirigentes do nosso futebol, impedindo a substituição, nas provas de campeonato, dos jogadores que sofrem traumatismo, de vulto a impedir actuação eficiente, e até dos traumatismos que de início levam o jogador ao hospital? Este clamoroso erro biológico, esportivo, técnico e econômico tem alguma justificativa lógica? O critério médico para as substituições em casos de traumatismos durante as provas de futebol é uma dessas medidas cuja ausência, entre nós, demonstra até falta de bom senso. A responsabilidade desses actos seria inteiramente do médico e este sabe que só pode justificá-las com factos reais. Quanta cena deprimente tem sido assistidas em nossos gramados, causadas pela actuação forçada e penosa de um jogador traumatizado!...
E, muitas vezes, a falta de jogador, ou, melhor, de um seu substituto, desorganiza completamente sua equipe, tornando inferior e sem interesse o restante da partida. Embora o profissionalismo, com as lacunas que já se fazem permanentes entre nós, tenha deformado muito o conceito do futebol como esporte e tenha tirado muito dos atributos vantajosos de suas competições, não se compreende, a não ser como proibida, a permanência na disputa de uma partida de um jogador seriamente contundido.
Mas voltemos ao papel do médico. Admita-se que tudo corra bem, durante a partida, e que a vitória venha coroar os esforços de um determinado conjunto. Cessará aí o papel dele? Não. Por certo ele não será elemento muito destacado nas expansões de entusiasmo superficial e nem nos abraços dados aos jogadores molhados pelo suor ou pela água dos chuveiros, pois terá de continuar seu trabalho. Compete ao médico, nesse momento, fazer uma revisão de todos os elementos de sua equipe, na busca de pequenos traumatismos, não importantes no decurso da refrega terminada, mas cuja evolução, se desfavorável, poderá incapacitar seu portador para a próxima partida.
Depois de tudo isto, ainda lhe compete prover e orientar a recuperação da equipe, através de repouso, alimentação e, às vezes, medicação adequada.
É uma tarefa das mais delicadas e principalmente em um meio em que a deficiência de instrução constitui quase uma regra. O médico precisa contar com uma autoridade construída na simpatia e na persuasão, pois, só assim, poderá evitar que os jogadores e certos “ardorosíssimos” aficcionados, comemorando, com excessos de toda espécie, e a vitória de hoje, preparem, de maneira inevitável, a derrota de amanhã. Eis, em linhas gerais, para esporte e um tanto particulares para o futebol, o papel do médico. Sua realização integral é impossível, sem a cooperação dos dirigentes, dos atletas e do quadro social. E é este o programa que o São Paulo Futebol Clube vem procurando pôr em prática, justificando, mais uma vez, seus esforços em prol do desenvolvimento da fisicultura, no Brasil.
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*O Dr. Piragibe Nogueira, sócio nº 1 do São Paulo, faleceu n dia 5 de outubro de 2008 aos 103 anos. O presidente Juvenal Juvêncio decretou luto oficial de sete dias em decorrência do falecimento.
Quando da fusão com o Clube Atlético Estudantes, ao qual pertencia, o médico Piragibe Nogueira proferiu o voto de Minerva na histórica reunião que, em 1938, escolheu a denominação São Paulo Futebol Clube. Na ocasião, foi eleito presidente e, em 1941, escolhido presidente do Conselho Deliberativo. De 1948 a 1951, dirigiu o Departamento Médico do clube, para onde levou toda sua vasta experiência profissional. Entre 1951 e 1962, foi consecutivamente eleito Presidente do Conselho Deliberativo. Participou ativamente da Comissão Pró-Estádio, cujo trabalho resultou na edificação do Morumbi. Por diversas vezes, na década de 60, ocupou a vice-presidência do tricolor. Foi nomeado conselheiro Vitalício em 1973 e assumiu a Presidência do Conselho Consultivo entre janeiro de 1979 e janeiro de 1984. Piragibe foi o único são-paulino que ocupou a Presidência dos três Conselhos.
Sua frase que ficou para história foi declarada ao amigo que me serviu de fonte para esse artigo, o "Chefe", quando o Dr. Piragibe estava aos seus 101 anos:
... Eu não teria vivido um século, se o São Paulo não existisse em minha vida....
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